esse post é parte separada da bad with words :)
Na manhã seguinte, eu já não estava mais bêbada, mas havia uma nuvem densa de embriaguez no ar que me deixava zonza. Não lembrava de muita coisa. Na minha cabeça vinham uns flashes, o cheiro de fumaça e das bebidas fortes, as pessoas falando alto, o som mais alto ainda, minhas roupas que pareciam cada vez mais desconfortáveis. Festas são sempre experiências sensoriais extremamente carregadas, aquela não era diferente.
Eu conseguia lembrar do seu rosto, meio turvo, meio torto, mas dele. Uma voz que parecia longe, mesmo estando bem perto. “Tá tudo bem com você?". "Você é tudo que eu sempre quis". O som da respiração ficava cada vez mais alto nos meus ouvidos, mais perto, e meu corpo paralisado. Eu não sabia o que tinha acontecido, mas sabia que eu era especial.
Eu sentia dor em toda parte. Aquilo aconteceu comigo porque eu era especial. Então por que doía tanto? Tentei não me prender nisso. Ele tinha me escolhido, o que mais eu poderia querer?
Passei anos observando sua vida, esperando o dia em que eu receberia um convite para fazer parte dela, esperando o dia que eu não seria mais uma espectadora, mas sim uma das atrizes principais. Durante meu tempo em casa, olhei suas redes sociais, as dos amigos, namorada, família. Todos eles eram tão diferentes de mim. Eu tentava ver neles algo que tivéssemos em comum, uma música que gostássemos, um filme que tivéssemos assistido no dia em que foi lançado, um acessório ou peça de roupa. Era tudo tão diferente de mim. Ou eu era tão diferente de tudo. Sua vida parece se encaixar tão perfeitamente, mas eu sou uma pecinha que não faz sentindo no meio de tudo. Á medida que os dias iam passando e essas ideias iam amadurecendo na minha mente, todos os espelhos da minha casa pareciam parar de refletir minha imagem, substituindo-a com a palavra "diferente" em letras garrafais. Eu não me via independente disso.
O que você fez não fazia sentido. Tentei dizer pra mim mesma que talvez você gostasse do fato de eu ser diferente. Era a única explicação. Afinal, por que então você teria me escolhido?
Depois de horas trancafiada no quarto, fui ao banheiro. Ainda doía.
Com o tempo, comecei a me comparar com as outras mulheres da sua vida. Quis ser as mãos da sua mãe fazendo sua cama de manhã enquanto você ainda está na escola, queria ser o olhar distante da sua irmã na foto de família pendurada na sala, quis ser os shorts jeans que sua amiga de infância usava quando ia brincar na sua casa, queria ser o sutiã arroxeado da sua namorada jogado em baixo da sua cama, o perfume doce da professora de química de vinte e poucos anos, os fios de cabelo cor de mel da atriz da propaganda de cerveja. Eu quis ser todas elas. Eu quis ser toda e qualquer coisa que te fizesse ver que eu era uma delas. Tão digna quanto elas. Tão especial quanto elas. Eu queria te mostrar que eu merecia mais, mais do que aquilo naquele banheiro mal iluminado.
Naquela noite, naquele banheiro de festa, eu não era diferente, não era uma peça defeituosa, eu não era igual aos outros, eu não era nada, nem sequer um objeto. Eu era um corpo. E era isso que me tornava especial. Você se via como um humano, e eu, algo sub-humano. Você tinha todo o poder. Não me conhecia, e nem queria conhecer, na verdade, isso nunca nem passou pela sua cabeça.
Acabei criando frases que gostaria que você tivesse me dito, coisas que eu gostaria de ouvir sendo direcionadas à mim. Misturei o que eu queria com o que aconteceu, com o monstro que você foi. Por um bom tempo, te coloquei como o salvador da minha história, alguém que viu em mim o ser humano que ninguém nunca havia visto, alguém que viu o desejo, alguém que viu a atração, alguém que viu o amor. Mas você nunca viu nada disso. Para você, eu era ainda menos humana que pros outros ao meu redor. Naquela noite barulhenta, eu achei que eu finalmente fazia parte de algo maior, que eu era parte do mundo, pela primeira vez na vida. Senti que as coisas tinham mudado.
Você gostava do poder que sabia que tinha.
Pensei se você já tinha feito isso antes, com outras garotas, em outras festas, ou talvez, até no mesmo lugar. Por um instante, achei engraçado alguém como você colecionar tantos corpos assim, sem ninguém saber. Meninos da sua idade gostam de se exibir, mas você sabia que não podia exibir isso. Você sabia que era errado, mas fez, e seguiu vivendo normalmente. E enquanto isso, minha garganta ainda ardia com o que tinha descido à força. Porque você tinha impunidade garantida, ninguém acreditaria em mim, nem eu.
Eu era uma cena de crime ambulante.
obrigada por ler até aqui! me diz o que achou da edição de hoje! vou adorar saber :D
estou sem fôlego. meu deus!
fiquei minutos com o teclado aberto pensando no que comentar. porque ne faltavam as palavras, mas eu sentia que precisava dizer alguma coisa. é uma representação do medo ou da memória comum de tantas de nós, como se a violência que cada uma sofre afetasse todas coletivamente. que texto forte e dilacerante!